Do Primeiro Assédio à Primeira Pessoa do Plural

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Seguindo outros ilustres exemplos dentro do jornalismo impresso e no ambiente da blogosfera, tratamos de abrir espaço para a #AgoraÉqueSãoElas em texto assinado pela jornalista, pesquisadora e escritora Sheila Kaplan.  Sheila saltou dos bancos universitários direto para as páginas de O Globo, onde trilhou carreira brilhante como repórter e crítica de teatro, escrevendo resenhas refinadíssimas que sempre foram lidas com o maior gosto. Transitou ainda por editoras e pelo espaço acadêmico. Organizou o livro “Jornalismo Eletrônico ao Vivo” (em parceria com o âncora Sidney Rezende) e é autora de dois trabalhos universitários primorosos sobre as escritas do cronista José Carlos de Oliveira e do poeta Murilo Mendes. Dando sequência ao périplo de jornalista, colaborou durante anos com a revista “Ciência Hoje”, produzindo artigos, reportagens científicas e chegando mesmo ao cargo de editora do caderno de cultura deste periódico científico. Veio ainda a descobrir a sua veia ficcional ao se aventurar pelo universo dos livros infanto-juvenis com “Duda Cata Tudo” (Editora Rovelle) e “Mgkai, o Estrangeiro” (Editora Edebê; a ser lançado em breve). Sheila Kaplan apresenta por aqui a sua perspectiva muito pessoal sobre a hashtag que está mobilizando combativas vozes femininas.

O dia a dia nas redes sociais costuma ser modorrento, como expediente em  repartição pública. De post em post, você é levado pra cá e pra lá – bom-dia com orquídeas e margaridas, artigos sobre o drama ou o escândalo da hora, uma música dos anos 50, bichanos fofos, “opiniães” sem fim. Após algum tempo, nauseado, você quase se afoga nesse oceano da dispersão. No meio disso, vez em quando, o potencial crítico e aglutinador das redes vem à tona. Foi o que aconteceu recentemente com a campanha #PrimeiroAssédio, que explodiu no twitter e facebook e rapidamente se alastrou nas redes, levando centenas (milhares?) de mulheres a contarem suas vivências de abuso.

Histórias numerosas, em diferentes nuances de violência: de uma mão indesejada a nos tocar o corpo ou a nos roçar a bunda, de forma despistada ou ostensiva, às experiências mais escabrosas de violentação e estupro. A campanha deixou a nu que o que muitas julgávamos pertencer ao âmbito pessoal situa-se, na verdade, na esfera do coletivo, numa cultura em que o assédio, em seus vários graus, é encarado – e tolerado – como efeito da “natureza” masculina. Quantos homens não entendem ainda como “elogio” o olhar lascivo acompanhado de um “te chuparia todinha”, que se tem de ouvir desde os primeiros anos da puberdade?

Ao desnaturalizar o assédio, os numerosos relatos vieram mostrar como todas sofremos alguma violência, em suas formas ditas mais brandas (as sortudas, como comentou uma das autoras) ou nas mais perversas. A campanha nos mostrou que, à época do primeiro assédio, quase todas nos calamos por vergonha ou culpa. Aos 10, 11 anos, é comum acreditar que foi algo em nós que, sem querer, provocou o abuso do outro. Perceber o quanto é generalizada esta violência nos faz ver como tais palavras e ações nos humilharam, envergonharam, machucaram. Como doeram e, muitas vezes, ainda dóem. A campanha nos aponta que já não é possível ver um caso de pancadaria doméstica e aceitar a justificativa de “descontrole”, ainda que tal versão seja confirmada pela vítima. Menos ainda ignorar a aprovação, à mesma época, do projeto de lei 5069/13, que nega o aborto às vítimas de abuso sexual e estupro ao obrigá-las a fazerem boletim de ocorrência e exame de corpo de delito para poderem ser atendidas, agregando violência à violência.

Estas e outras questões foram discutidas quando, num momento seguinte, a campanha nascida nas redes migrou para a mídia impressa, expandindo-se no #AgoraÉQueSãoElas, em que colunistas homens cederam seu lugar para mulheres refletirem sobre a sua realidade e direitos (http://goo.gl/RsNm1G). Sem dúvida, uma iniciativa importante, mas que não nos impede de pensar que o hashtag, à parte o trocadilho sonoro que tanto agrada à mídia, denuncia que são “eles” que detêm a fala. “Eles”, que cavalheirescamente nos cedem, nessa (breve) ocasião, seu lugar. É um avanço, mas evidencia que ainda há muito pra se conquistar até que se possa chegar ao #AgoraSomosNós.

 

Sobre Marcos Pedrosa de Souza

Marcos Pedrosa de Souza é professor da Fundação Cecierj. Tem formação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e em letras pela Universidade Santa Úrsula. É mestre e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi colaborador de O Globo e de outros jornais e revistas. Foi professor do IBEU, da Cultura Inglesa e da Universidade Estácio de Sá.
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2 respostas para Do Primeiro Assédio à Primeira Pessoa do Plural

  1. ana maria pedrosa sa freire de souza disse:

    Sheila como sempre perspicaz e interessante de ler.Esperamos ansiosas Agora somos nós.

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  2. Regina Cocking disse:

    Muito bom e certeiro o artigo de Sheila.

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